quarta-feira, 21 de maio de 2014

Ainda que não queira mais saber de mim,
Do meu paradeiro, de como levo a vida.
Nem mesmo ouvir falar no meu nome.
Mas insisto!
É que nasci onde nada é fácil,
Onde nada nasce de maneira espontânea.
É preciso o uso da força, da vontade, e das paixões,
Que agora, classifico como amor.
No meu mundo de agora, considero o tempo com mais cuidado.
E a respiração, como o compasso do tempo que resta.
Do tempo que tenho para fazer.
Sinto o seu cheiro em acordes de sanfona.
Me vem a todo momento.
Às vezes, dissonante e louco,
Como um menino experimentando os primeiro sopapos de ansiedade no peito.
Outras vezes, te vejo como um velho,
Na altura da idade e maturescência,
já podre por fora, mas curtido de poesia por dentro.


Saulo Oliveira

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Não procuro nem leio João...

... ao contrário, João é quem me procura e me lê.
No meu sonho, o encontro sempre no cair da tarde, embalado pela fresca das veredas, protegido, embaixo da sombra de um buriti formoso e grande, plantado sobre a imensidão do Sertão.
 Ele vem cavalgando o seu Burrinho Pedrês, vagaroso, pacífico, pedindo paciência e trato no viver!
... — Viver é perigoso, perigoso, perigoso por demais!
São os ecos de ponderação de Riobaldo que o acompanha na garupa do burrinho que geme pelo caminho de cascalho. O sofrimento do burro pequeno, porém dotado de aguda esperteza, é recompensado pela esperança que nutre de encontrar, no fim da jornada, uma bacia forrada do melhor pasto.
No momento em que João me avista, atrás dos seus óculos enormes e de aros grossos, é perceptível a sua emoção. Vislumbro uma poça de água na beirada de seus olhos, e o reflexo exato do menino Miguilin. Como suspeitava, João já não distingue o real do não real; o criador da criatura, personagem criado, segundo sua vivência,  do homem que já existe pleno, torto, continuamente em construção e disputando espaço com o Cujo,  o Coxo, o Temba, o Canho, o Que não Ri, o Pé de Pato, o Demo, o Rapaz...
A sua pele brilha, não sei se do suor que derrama pelo esforço sob o sol, ou se pela beleza magnânima, herdada de Diadorim. A disposição, ao apear da montada, é impressionante. Mesmo mancando da perna, por padecer de uma íngua na virilha, se movimenta com agilidade. Vai no alforje e se serve da matula. Em seguida, traz  um pouco do suprimento para repartir entre nós,  todos já cansados e famintos. Nesse momento do sonho, nos emocionamos... Seus gestos de força e generosidade nos lembra o falecido e tão honrado Manuelzão.
A noite vem chegando e ele não quer estender a conversa para além do poente. Não quer prolongar a sua estada fora de casa ao romper da noite. Dizem que, dos últimos meses para cá, deu para ouvir cada barulho que a madrugada produz; cada som emitido pelos habitantes noturnos do mato. Deu pra varar as horas acordado, assistindo a qualquer suspiro de vida nas brenhas, barrocas e locas, tal como o Chefe.
Dentre todos os hábitos que temos em comum, o de pitar um cigarro de fumo de corda, enrolado numa palha fina sedosa, após um bom gole de café fresco, é o que figura mais exato em minha memória.
João, enquanto viveu, não quis dar lição de moral, tampouco ensinar. Através do exemplo foi que o bruxo diplomata, como era lembrado por alguns dos seus amigos, mostrou ao mundo a força da experiência empírica transpassada para o papel com esmero e fidelidade de detalhes... Quanta força criativa ao reinventar um universo tão dele...! Tão nosso!
É ai que reside o gosto incontido e a paixão pelas letras bordadas de magia desse sertanejo chamado João, que segundo Drummond, deixou esse mundo, e "ficamos sem saber quem era João e se João existiu".
Se foi só um sonho ou se de fato João existiu, eu não sei!
Nos deixou muito cedo, mas com uma monumental riqueza de palavras, que hoje,  sei   apenas que, também sou sertanejo e gosto muito desse Guimarães, consagrado João!


Saulo Oliveira

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Na beira do rio...

      Se perdera, outra vez, na nuvem densa de lembranças que lhe acorria, ali mesmo na beira do rio, enquanto seguia deitado de papo pro ar, ao longo de um número de horas que nem se lembrava mais. Ia junto à correnteza que descia resolvida. Tudo naquela barranca úmida com cheiro de barro ainda novo e lavado, lhe encantava... —Tomava o ar curto da criança! Depois, observava a lágrima descer em borbotões. De excitação, seu corpo estremecia em calafriozinhos que chegavam feito um fio fino d’água. Um anu-preto rompe o peito e o silêncio absoluto, numa toada saudosa. Um canto aprumado, constante e cheio dos mistérios daquele mundo que não vemos, por falta de visão. Pensava agora nos de casa. No pessoalzinho de corpo rijo, lépido, mas mirrado. Das criaturazinhas que sofrem caladas, no pé da porta dumas casinhas sem graça, cimentadas de tristeza, com tijolos cozidos no forno das desilusões. Tudo sem muita alegria, quase nada de ânimo, "rama espalhando barrigadas no chão".  Tudo isso lá na ponta da estrada que dá para uma vegetação seca, sentindo falta da visita da chuva, que demora.
     Apois a beira do rio lhe caia mais de conforme. Não que não gostasse dos seus. Não que o chão quente e seco não lhe inspirasse cuidados e afeto. Tinha-lhes amor. É que tirar o pé do mundo real, quando se pode, faz é muito bem. Não ter que cismar frente à dificuldade, nem ter que fazer muito do pouco... Lembra que não tarda até sua mãe sair pela trilha empoeirenta que desemboca no areal, alvo que nem algodão. Não demora muito até ela lhe pegar pelo braço, com carranca de brava, e arrastá-lo pra casa. Esperneava sempre. Gemia, gritava e ia num choro só de fazer pena. A matriarca cheia de raiva por essa empreitada roubar-lhe horas dos seus afazeres, que não eram poucos.
     Bastava chegar em casa pra o coração velho de mãe amolecer e transformar a raiva em entendimento. Em doçura. Aprendeu ainda esses dias com um enxame de abelhas no quintal de casa, rondando um mamoeiro. Uma zoeira tão danada e violenta. Um ferrão tão poderoso de veneno. Era só olhar o inchaço na quina do pescoço. No fim, descobriu que tanta ojeriza e maldade produziam mel... —Vai entender.
    A panela, a essa hora, já devia de ter algum de comer pronto. "A peste do menino lhe atrasou a labuta outra vez". O marido, velho coitado, pelejava igual um desgraçado, arrancando pedra na esperança de crescer um roçado. Já devia de estar chegando. Pé na estrada, as costas arqueadas e vestidas de molambos. Trazendo a fome na cara preta de sol. O beiço em riste, empinado de antipatia, feito burro na iminência de empacar. Lambia o sal seco que empedrava pouco arriba do queixo.
    Com a quentura do meio-dia, o chão batido abrigava um punhado de frescor. O pequeno, agora de paz refeita com a mãe, espoja manhoso, com o cachorro seu amigo, pegando um tanto do frio pra si. Ouve lá fora o ritual diário de seu pai antes de entrar. Esfrega as botinas sujas num tampo de madeira que toma as vezes de tapete. Já dentro, tira o trapo de chapéu e o escorrega lento no braço da cadeira que, por sua vez, também serve de trinco para a porta. Ao se verem, pai e filho se confundem num só. Não sabem quem é quem. Se o é adulto, ou se o foi criança. Sabe, mas custa admitir. Há muito que a obediência faz as coisas se repetirem. O pai tem os ensinamentos sólidos e sabe. O filho deu pra aprender e custa a admitir. Descamba pro rio todo dia. Adormece em suas margens, e observa a vontade do mato, que cresce solto. Não compreende o significado da palavra liberdade, mas a viu esses dias nos pés de um sapo bruto, que pula ligeiro. Viu, incutiu e pegou a sonhar... Jura que até já a viu dando voltas em seu corpinho de vara, enquanto repousa no lajedo, se secando sob o sol... E que, ainda aproveita o embalo do vento morno da manhã adiantada, e sussurra em seu ouvido palavras difíceis de uma criança decifrar.  


Saulo Oliveira

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Naquela tarde tudo era o mesmo...

O frio de junho nos Gerais; a sala cheia e os meninos, maliciosamente, insinuando além de nossa amizade e carinho mútuo  escancarado, nos constrangendo.
Dizem que era tua despedida, eu digo que foi tua estreia num universo que pode ser compreendido, menos como um ofício que, como uma missão. Pegar nas mãos dos pequenos enquanto ainda tateiam pelas paredes crespas e hostis do mundo, não deve ser outra coisa, senão missão. Em minha memória estão eternizados, ao menos, dois professores.
Pois bem, o que eu quero dizer é que, naquela tarde tudo era o mesmo! A espontaneidade que encanta era a mesma; a maturidade impressionantemente esculpida num rosto de adolescente era a mesma. Eu quis falar, mas não podia... Quis, mas não devia, e nem devo.
Aproveito para dizer ainda que, também era o mesmo o teu amor pelo teu Deus, pelos teus santos e às tuas causas, e isso é tão bonito.
Nasceste com a difícil tarefa de harmonizar a instabilidade mundana, e por isso caminha em direção oposta à maioria.  Vês como o velho Quixote e segue resoluta, pelo caminho metafórico de Cristo. 
Gil, numa canção, canta que a fé não costuma falhar. Penso o mesmo, embora não seja religioso. A tua é sólida!
Roubei de uma outra música esses dias: a gente não precisa estar junto para estar perto...
... podemos, perfeitamente, seguir! E, no entanto, nossa amizade pode ter o tamanho da tua fé e durar até o nosso último pôr-do-sol. Você daí, eu de cá, e os raios do crepúsculo aquecendo nossas casas, vidas, almas, velhice, e lembrando-nos da nossa existência.
Quero ainda, se não for demais, te confessar, bem baixinho, para que ninguém mais saiba, que a rebeldia e inconstância, marcas tão clichês, já se descolam do meu couro.
Ganho idade e minhas vontades tornam-se ações.

Saulo Oliveira

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

...

Salta ao meu olhar
Da sua pele branca tatuada
Olhos famintos
Que saltam ao me olhar.
 Podiam se destacar
 Traços pretos e precisos
Mas o desenho realístico
 Pouco se faz lembrar.
Mas me lembro, não esqueço
 Como posso?
Dos olhos vermelhos
 Que ardiam nos meus pretos,
Minha pele vermelha a queimar.
Rubra do desejo
Que seu olhar faminto e negro
Fez saltar dos meus olhos
Quando só pude te olhar.

(Mari)

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Fim de dia, casa igual

Mais poético é o caso de um homem que se propõe um fim que não está vedado a outros, mas sim a ele.
Jorge Luis Borges: O Aleph, A Procura de Averróis.

... vai se equilibrando desengonçado na linha fina que o traz de volta ao mundo; que o desatola de uma vontade imensa e irresistível de não fazer nada. Vai assim, aos poucos, se recompondo, se ajeitando, tomando fôlego, se contorcendo no colchão, já fundo, sobre uma pilha, que a cada mês só cresce, de papéis de letras miúdas, misturados a fotos antigas, ainda saborosas, a rascunhos que, desejava não ter traçado, e a jornais escritos por gente séria, sisuda, com um papo cabeça e preocupadas em resolver tudo e deixar tudo como está!
... vai tentando se convencer de que precisa, realmente, sair no dia seguinte. Tentando acreditar que, tem um compromisso.
Noite alta, e resolve que não há nada que supere o prazer do silêncio voluntário e de um gole d’água fresca antes de deitar. 
A suspeita de que talvez não consiga dormir, não lhe agoniza; é agora experimentado na prática de enganar a insônia; a descansar a cabeça em meio à confusão e o movimento desordenado lá de fora. A crença agora é na volta do artista, daquele músico trovador de bobagens que, rompia horas e angústias com notas dissonantes encontradas e esquecidas com a mesma facilidade de uma ereção juvenil. Percebe uma marca, possivelmente um defeito de fábrica que não reparara antes, no braço do violão. Seus dedos alcançam alguns acordes com dificuldade. Desiste, e um instante depois, adormece depressa.
O passo é largo, as ruas, ao contrário, parecem estreitas. As meias que usa lhe confortam e esquentam os pés, numa manhã tão gelada e cheia de névoa que não consegue enxergar o que está à sua frente. Segue de maneira intuitiva pelo som. Ouve o eco que sua bota provoca em contato com o solo rude e molhado da calçada. Recebe como resposta as buzinas desalinhadas dos ônibus que sobem, cheios, uma avenida sem acesso transversal, e por isto, distante dali.      
Tudo no caminho vai se estabelecendo, se encaixando à medida que caminha. Tal como num poema, onde as letras às vezes parecem não encontrar espaço nem tempo adequado onde repousar, as cores se turvam e se confundem com a invasão do astro que irrompe tímido, espremido e sufocado pelas nuvens donas do céu. Vê que, briga é coisa de amador!

O sol se rende e o riso lhe vem fácil!

Saulo Oliveira