...
ao contrário, João é quem me procura e me lê.
No
meu sonho, o encontro sempre no cair da tarde, embalado pela fresca das veredas,
protegido, embaixo da sombra de um buriti formoso e grande, plantado sobre a
imensidão do Sertão.
Ele vem cavalgando o seu Burrinho Pedrês,
vagaroso, pacífico, pedindo paciência e trato no viver!
...
— Viver é perigoso, perigoso, perigoso por demais!
São
os ecos de ponderação de Riobaldo que o acompanha na garupa do burrinho que
geme pelo caminho de cascalho. O sofrimento do burro pequeno, porém dotado de
aguda esperteza, é recompensado pela esperança que nutre de encontrar, no fim
da jornada, uma bacia forrada do melhor pasto.
No
momento em que João me avista, atrás dos seus óculos enormes e de aros grossos,
é perceptível a sua emoção. Vislumbro uma poça de água na beirada de seus
olhos, e o reflexo exato do menino Miguilin. Como suspeitava, João já não
distingue o real do não real; o criador da criatura, personagem criado, segundo
sua vivência, do homem que já existe
pleno, torto, continuamente em construção e disputando espaço com o Cujo, o Coxo, o Temba, o Canho, o Que não Ri, o Pé
de Pato, o Demo, o Rapaz...
A
sua pele brilha, não sei se do suor que derrama pelo esforço sob o sol, ou se
pela beleza magnânima, herdada de Diadorim. A disposição, ao apear da montada,
é impressionante. Mesmo mancando da perna, por padecer de uma íngua na virilha,
se movimenta com agilidade. Vai no alforje e se serve da matula. Em seguida, traz um pouco do suprimento para
repartir entre nós, todos já cansados e
famintos. Nesse momento do sonho, nos emocionamos... Seus gestos de força e
generosidade nos lembra o falecido e tão honrado Manuelzão.
A
noite vem chegando e ele não quer estender a conversa para além do poente. Não
quer prolongar a sua estada fora de casa ao romper da noite. Dizem que, dos
últimos meses para cá, deu para ouvir cada barulho que a madrugada produz; cada
som emitido pelos habitantes noturnos do mato. Deu pra varar as horas acordado,
assistindo a qualquer suspiro de vida nas brenhas, barrocas e locas, tal como o
Chefe.
Dentre
todos os hábitos que temos em comum, o de pitar um cigarro de fumo de corda,
enrolado numa palha fina sedosa, após um bom gole de café fresco, é o que
figura mais exato em minha memória.
João,
enquanto viveu, não quis dar lição de moral, tampouco ensinar. Através do
exemplo foi que o bruxo diplomata, como era lembrado por alguns dos seus
amigos, mostrou ao mundo a força da experiência empírica transpassada para o
papel com esmero e fidelidade de detalhes... Quanta força criativa ao
reinventar um universo tão dele...! Tão nosso!
É ai
que reside o gosto incontido e a paixão pelas letras bordadas de magia desse sertanejo
chamado João, que segundo Drummond, deixou esse mundo, e "ficamos sem
saber quem era João e se João existiu".
Se
foi só um sonho ou se de fato João existiu, eu não sei!
Nos
deixou muito cedo, mas com uma monumental riqueza de palavras, que hoje, sei apenas que, também sou sertanejo e gosto muito
desse Guimarães, consagrado João!