segunda-feira, 2 de julho de 2012

A volta

O sol ardia, era de rachar a cabeça d’algum desavisado que ousasse não se precaver. Por isso, o homem se escondia debaixo de um chapéu de abas desproporcionais ao seu tamanho. Ao descer do ônibus, as pessoas olhavam-no com espanto e admiração. Aquela figura grotesca causava forte impressão onde passava.
Jamais imaginara sair um dia de seu habitat, de sua toca, de sua cidade minúscula, incrustada nas entranhas do mundo. Nunca antes havia pisado numa calçada, dessas de jardim, nunca experimentara antes ouvir música, ver vitrines com coisas expostas à venda. Era primitivo demais, achava aquilo exagerado.
Seu nome era Alguém, sabia-lhe somente de boca, pois no lugar de onde veio não se usa registrar nomes, nem mesmo formalizar nascimento ou óbito. As pessoas de lá vivem bem sem essas burocracias. Vivem ainda de trocas, são totalmente dependentes umas das outras, sensíveis ao amor. Sabem que sua sobrevivência, satisfação, felicidade, estão umbilicalmente ligadas à de seu vizinho; da mesma maneira que suas frustrações e medos são compartilhados.
Alguém, apesar de homem rústico, de ignorar a existência de uma escola, e desprezar a tecnologia, era dotado de uma capacidade de observação aguçadíssima. Era moço inculto, mas tinha imaginação e poesia. Em seu primeiro giro pela cidade, o que mais lhe chamou atenção, foi perceber a maneira como as pessoas lidavam com as outras e como levavam suas vidas. A frieza no trato diário, e o compromisso maquinal em cumprir rotinas inflexíveis, causavam-lhe uma sensação desagradável.
Andou ainda por algum tempo, a esmo, e ocorreu-lhe que aquela experiência era demais; constatou que definitivamente não havia nada a ser aprendido ou compartilhado, pois ninguém dava a mínima; e apreensivo, meteu a mão cascuda no bolso da sua única calça, já em trapos, e encontrou o que procurava. Via naquele bilhete sua salvação; concluiu que sairia ileso, que havia chances de não ter sido contaminado, e regressou o caminho apressadamente.
Horas mais tarde, já acomodado num banco de cimento na rodoviária, pôde finalmente respirar aliviado, ao ouvir uma voz insistente, que saia de um alto falante pendurado num canto, e que gritava: próximo ônibus de volta a... às...!

Saulo Oliveira

Um comentário:

  1. Excelente texto Saulitcho! É sempre preciso romper com o cordão umbilical para que possamos ser outro, mas não reconhecer-se em alguém é não existir! Acredito que essa volta não signifique uma regressão, mas uma estratégia de sobrevivência.

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