quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Não procuro nem leio João...

... ao contrário, João é quem me procura e me lê.
No meu sonho, o encontro sempre no cair da tarde, embalado pela fresca das veredas, protegido, embaixo da sombra de um buriti formoso e grande, plantado sobre a imensidão do Sertão.
 Ele vem cavalgando o seu Burrinho Pedrês, vagaroso, pacífico, pedindo paciência e trato no viver!
... — Viver é perigoso, perigoso, perigoso por demais!
São os ecos de ponderação de Riobaldo que o acompanha na garupa do burrinho que geme pelo caminho de cascalho. O sofrimento do burro pequeno, porém dotado de aguda esperteza, é recompensado pela esperança que nutre de encontrar, no fim da jornada, uma bacia forrada do melhor pasto.
No momento em que João me avista, atrás dos seus óculos enormes e de aros grossos, é perceptível a sua emoção. Vislumbro uma poça de água na beirada de seus olhos, e o reflexo exato do menino Miguilin. Como suspeitava, João já não distingue o real do não real; o criador da criatura, personagem criado, segundo sua vivência,  do homem que já existe pleno, torto, continuamente em construção e disputando espaço com o Cujo,  o Coxo, o Temba, o Canho, o Que não Ri, o Pé de Pato, o Demo, o Rapaz...
A sua pele brilha, não sei se do suor que derrama pelo esforço sob o sol, ou se pela beleza magnânima, herdada de Diadorim. A disposição, ao apear da montada, é impressionante. Mesmo mancando da perna, por padecer de uma íngua na virilha, se movimenta com agilidade. Vai no alforje e se serve da matula. Em seguida, traz  um pouco do suprimento para repartir entre nós,  todos já cansados e famintos. Nesse momento do sonho, nos emocionamos... Seus gestos de força e generosidade nos lembra o falecido e tão honrado Manuelzão.
A noite vem chegando e ele não quer estender a conversa para além do poente. Não quer prolongar a sua estada fora de casa ao romper da noite. Dizem que, dos últimos meses para cá, deu para ouvir cada barulho que a madrugada produz; cada som emitido pelos habitantes noturnos do mato. Deu pra varar as horas acordado, assistindo a qualquer suspiro de vida nas brenhas, barrocas e locas, tal como o Chefe.
Dentre todos os hábitos que temos em comum, o de pitar um cigarro de fumo de corda, enrolado numa palha fina sedosa, após um bom gole de café fresco, é o que figura mais exato em minha memória.
João, enquanto viveu, não quis dar lição de moral, tampouco ensinar. Através do exemplo foi que o bruxo diplomata, como era lembrado por alguns dos seus amigos, mostrou ao mundo a força da experiência empírica transpassada para o papel com esmero e fidelidade de detalhes... Quanta força criativa ao reinventar um universo tão dele...! Tão nosso!
É ai que reside o gosto incontido e a paixão pelas letras bordadas de magia desse sertanejo chamado João, que segundo Drummond, deixou esse mundo, e "ficamos sem saber quem era João e se João existiu".
Se foi só um sonho ou se de fato João existiu, eu não sei!
Nos deixou muito cedo, mas com uma monumental riqueza de palavras, que hoje,  sei   apenas que, também sou sertanejo e gosto muito desse Guimarães, consagrado João!


Saulo Oliveira

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Na beira do rio...

      Se perdera, outra vez, na nuvem densa de lembranças que lhe acorria, ali mesmo na beira do rio, enquanto seguia deitado de papo pro ar, ao longo de um número de horas que nem se lembrava mais. Ia junto à correnteza que descia resolvida. Tudo naquela barranca úmida com cheiro de barro ainda novo e lavado, lhe encantava... —Tomava o ar curto da criança! Depois, observava a lágrima descer em borbotões. De excitação, seu corpo estremecia em calafriozinhos que chegavam feito um fio fino d’água. Um anu-preto rompe o peito e o silêncio absoluto, numa toada saudosa. Um canto aprumado, constante e cheio dos mistérios daquele mundo que não vemos, por falta de visão. Pensava agora nos de casa. No pessoalzinho de corpo rijo, lépido, mas mirrado. Das criaturazinhas que sofrem caladas, no pé da porta dumas casinhas sem graça, cimentadas de tristeza, com tijolos cozidos no forno das desilusões. Tudo sem muita alegria, quase nada de ânimo, "rama espalhando barrigadas no chão".  Tudo isso lá na ponta da estrada que dá para uma vegetação seca, sentindo falta da visita da chuva, que demora.
     Apois a beira do rio lhe caia mais de conforme. Não que não gostasse dos seus. Não que o chão quente e seco não lhe inspirasse cuidados e afeto. Tinha-lhes amor. É que tirar o pé do mundo real, quando se pode, faz é muito bem. Não ter que cismar frente à dificuldade, nem ter que fazer muito do pouco... Lembra que não tarda até sua mãe sair pela trilha empoeirenta que desemboca no areal, alvo que nem algodão. Não demora muito até ela lhe pegar pelo braço, com carranca de brava, e arrastá-lo pra casa. Esperneava sempre. Gemia, gritava e ia num choro só de fazer pena. A matriarca cheia de raiva por essa empreitada roubar-lhe horas dos seus afazeres, que não eram poucos.
     Bastava chegar em casa pra o coração velho de mãe amolecer e transformar a raiva em entendimento. Em doçura. Aprendeu ainda esses dias com um enxame de abelhas no quintal de casa, rondando um mamoeiro. Uma zoeira tão danada e violenta. Um ferrão tão poderoso de veneno. Era só olhar o inchaço na quina do pescoço. No fim, descobriu que tanta ojeriza e maldade produziam mel... —Vai entender.
    A panela, a essa hora, já devia de ter algum de comer pronto. "A peste do menino lhe atrasou a labuta outra vez". O marido, velho coitado, pelejava igual um desgraçado, arrancando pedra na esperança de crescer um roçado. Já devia de estar chegando. Pé na estrada, as costas arqueadas e vestidas de molambos. Trazendo a fome na cara preta de sol. O beiço em riste, empinado de antipatia, feito burro na iminência de empacar. Lambia o sal seco que empedrava pouco arriba do queixo.
    Com a quentura do meio-dia, o chão batido abrigava um punhado de frescor. O pequeno, agora de paz refeita com a mãe, espoja manhoso, com o cachorro seu amigo, pegando um tanto do frio pra si. Ouve lá fora o ritual diário de seu pai antes de entrar. Esfrega as botinas sujas num tampo de madeira que toma as vezes de tapete. Já dentro, tira o trapo de chapéu e o escorrega lento no braço da cadeira que, por sua vez, também serve de trinco para a porta. Ao se verem, pai e filho se confundem num só. Não sabem quem é quem. Se o é adulto, ou se o foi criança. Sabe, mas custa admitir. Há muito que a obediência faz as coisas se repetirem. O pai tem os ensinamentos sólidos e sabe. O filho deu pra aprender e custa a admitir. Descamba pro rio todo dia. Adormece em suas margens, e observa a vontade do mato, que cresce solto. Não compreende o significado da palavra liberdade, mas a viu esses dias nos pés de um sapo bruto, que pula ligeiro. Viu, incutiu e pegou a sonhar... Jura que até já a viu dando voltas em seu corpinho de vara, enquanto repousa no lajedo, se secando sob o sol... E que, ainda aproveita o embalo do vento morno da manhã adiantada, e sussurra em seu ouvido palavras difíceis de uma criança decifrar.  


Saulo Oliveira

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Naquela tarde tudo era o mesmo...

O frio de junho nos Gerais; a sala cheia e os meninos, maliciosamente, insinuando além de nossa amizade e carinho mútuo  escancarado, nos constrangendo.
Dizem que era tua despedida, eu digo que foi tua estreia num universo que pode ser compreendido, menos como um ofício que, como uma missão. Pegar nas mãos dos pequenos enquanto ainda tateiam pelas paredes crespas e hostis do mundo, não deve ser outra coisa, senão missão. Em minha memória estão eternizados, ao menos, dois professores.
Pois bem, o que eu quero dizer é que, naquela tarde tudo era o mesmo! A espontaneidade que encanta era a mesma; a maturidade impressionantemente esculpida num rosto de adolescente era a mesma. Eu quis falar, mas não podia... Quis, mas não devia, e nem devo.
Aproveito para dizer ainda que, também era o mesmo o teu amor pelo teu Deus, pelos teus santos e às tuas causas, e isso é tão bonito.
Nasceste com a difícil tarefa de harmonizar a instabilidade mundana, e por isso caminha em direção oposta à maioria.  Vês como o velho Quixote e segue resoluta, pelo caminho metafórico de Cristo. 
Gil, numa canção, canta que a fé não costuma falhar. Penso o mesmo, embora não seja religioso. A tua é sólida!
Roubei de uma outra música esses dias: a gente não precisa estar junto para estar perto...
... podemos, perfeitamente, seguir! E, no entanto, nossa amizade pode ter o tamanho da tua fé e durar até o nosso último pôr-do-sol. Você daí, eu de cá, e os raios do crepúsculo aquecendo nossas casas, vidas, almas, velhice, e lembrando-nos da nossa existência.
Quero ainda, se não for demais, te confessar, bem baixinho, para que ninguém mais saiba, que a rebeldia e inconstância, marcas tão clichês, já se descolam do meu couro.
Ganho idade e minhas vontades tornam-se ações.

Saulo Oliveira

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

...

Salta ao meu olhar
Da sua pele branca tatuada
Olhos famintos
Que saltam ao me olhar.
 Podiam se destacar
 Traços pretos e precisos
Mas o desenho realístico
 Pouco se faz lembrar.
Mas me lembro, não esqueço
 Como posso?
Dos olhos vermelhos
 Que ardiam nos meus pretos,
Minha pele vermelha a queimar.
Rubra do desejo
Que seu olhar faminto e negro
Fez saltar dos meus olhos
Quando só pude te olhar.

(Mari)

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Fim de dia, casa igual

Mais poético é o caso de um homem que se propõe um fim que não está vedado a outros, mas sim a ele.
Jorge Luis Borges: O Aleph, A Procura de Averróis.

... vai se equilibrando desengonçado na linha fina que o traz de volta ao mundo; que o desatola de uma vontade imensa e irresistível de não fazer nada. Vai assim, aos poucos, se recompondo, se ajeitando, tomando fôlego, se contorcendo no colchão, já fundo, sobre uma pilha, que a cada mês só cresce, de papéis de letras miúdas, misturados a fotos antigas, ainda saborosas, a rascunhos que, desejava não ter traçado, e a jornais escritos por gente séria, sisuda, com um papo cabeça e preocupadas em resolver tudo e deixar tudo como está!
... vai tentando se convencer de que precisa, realmente, sair no dia seguinte. Tentando acreditar que, tem um compromisso.
Noite alta, e resolve que não há nada que supere o prazer do silêncio voluntário e de um gole d’água fresca antes de deitar. 
A suspeita de que talvez não consiga dormir, não lhe agoniza; é agora experimentado na prática de enganar a insônia; a descansar a cabeça em meio à confusão e o movimento desordenado lá de fora. A crença agora é na volta do artista, daquele músico trovador de bobagens que, rompia horas e angústias com notas dissonantes encontradas e esquecidas com a mesma facilidade de uma ereção juvenil. Percebe uma marca, possivelmente um defeito de fábrica que não reparara antes, no braço do violão. Seus dedos alcançam alguns acordes com dificuldade. Desiste, e um instante depois, adormece depressa.
O passo é largo, as ruas, ao contrário, parecem estreitas. As meias que usa lhe confortam e esquentam os pés, numa manhã tão gelada e cheia de névoa que não consegue enxergar o que está à sua frente. Segue de maneira intuitiva pelo som. Ouve o eco que sua bota provoca em contato com o solo rude e molhado da calçada. Recebe como resposta as buzinas desalinhadas dos ônibus que sobem, cheios, uma avenida sem acesso transversal, e por isto, distante dali.      
Tudo no caminho vai se estabelecendo, se encaixando à medida que caminha. Tal como num poema, onde as letras às vezes parecem não encontrar espaço nem tempo adequado onde repousar, as cores se turvam e se confundem com a invasão do astro que irrompe tímido, espremido e sufocado pelas nuvens donas do céu. Vê que, briga é coisa de amador!

O sol se rende e o riso lhe vem fácil!

Saulo Oliveira


sexta-feira, 28 de junho de 2013

Rodoviária... Um ano depois...

Mais velho. Não menos apaixonado. Não menos curioso!
Desta vez, deixando amores também do lado de cá; deixando reticências em linhas a serem preenchidas na volta.
A mochila, a mesma, só que, com marcas de expressões tal qual o dono; dadas pelo tempo a fim de atestar a experiência adquirida e a passagem cheia... Cheia de idas e vindas.
Antes da partida, um tempinho para o café, a água, o cigarro e também para uma rápida revirada na memória e ai o cheiro de lenha queimando na madrugada de 23 de junho em meio a comida e alegria incontida.
... as ruazinhas tão bem ornadas de bandeirolas de cores diversas e chamativas.
Antes da partida, um tempo ainda para espiar  meus companheiros de rodoviária; prováveis amigos de estrada, de conversas furtivas. Não nos conhecemos. Nem sequer imaginamos que à frente nos conheceremos. Que compartilharemos histórias, infortúnios, risos!
No entanto há algo que sabemos a priori. Talvez o elo mais consistente que nos liga: o sonho escondido nas muralhas da cidade; a metrópole a ser desvendada.
Vislumbro ali no canto, esparramadas sobre a bagagem farta, aquelas mesmas meninas entediadas, procurando consolo nas teclas do celular. Mas já não são as mesmas; parecem mais maduras, mais seguras, confiantes. Ou são meus olhos? Talvez sejam meus olhos. Talvez seja eu mesmo. O fato de não precisar mais se livrar de nada.
O que importa é que tenho motivos para voltar!
... o colo quente da menina índia... O texto embolado na gaveta, inacabado!... O coador de pano encardido sobre a pia, transbordando pó fresco para mais uma dose numa manhã chuvosa de sábado, ou numa madrugada varada de domingo.
... a roupa na máquina e um intervalo para mais uma cerveja.
... pinçar frases e sentidos de músicas ouvidas repetidamente, à exaustão. Como esta: e cada coisa perdida, perdidamente pode se apaixonar!
Deixo mais! Deixo a capital fervilhando de gente nas ruas, aturdidas por mudanças. Sem ainda uma proposta clara a seguir, mas seguindo assim mesmo. me arrepio de pensar como foi louco e lindo aquilo.
Como o ar de rodoviária faz bem. Toda essa gente ansiosa, falante.
Não há lágrimas, não há beijo. Não há mulheres penduradas em pescoços e nem homens de olhos vermelhos reprimindo emoções. Há somente uma imensa e revigorante vontade de chegar.

São Paulo, 19 de junho de 2013, Rodoviária do Tietê.

Saulo Oliveira

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Os rios de dois Joões...

"Quando escrevo, repito o que já vivi antes.
E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente.
Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo
vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser
um crocodilo porque amo os grandes rios,
pois são profundos como a alma de um homem.
Na superfície são muito vivazes e claros,
mas nas profundezas são tranqüilos e escuros
como o sofrimento dos homens."



João Guimaraes Rosa

Miguel Schincariol

A um rio sempre espera
um mais vasto e ancho mar.
Para a agente que desce
é que nem sempre existe esse mar,
pois eles não encontram
na cidade que imaginavam mar
senão outro deserto
de pântanos perto do mar.
Por entre esta cidade
ainda mais lenta é minha pisada;
retardo enquanto posso
os últimos dias da jornada.
Não há talhas que ver,
muito menos o que tombar:
há apenas esta gente
e minha simpatia calada.


João Cabral de Melo Neto

sábado, 4 de maio de 2013

...

Com o gosto ainda fresco do beijo.
Com a história malsucedida atravessada na garganta.
Seguindo, pela teimosia que ainda impera. A vontade de sorrir. A dúvida. A descoberta.
Adiante, porque no dia seguinte há paz.
 À frente, pelo eventual encontro. Pela escolha que chega a nós já escolhida e quase pronta.
Arriba, só pelo gosto da mudança. Do rosto atrás do muro pichado e sujo. Dos olhos. Do gemido. Do não.
Perseguindo a parte simples. O texto de poucas palavras. A estrela que mora na boca de alguém!
Os pés, agora descalços, acostumados com a ponta fina das pedras.
O corpo que não prostra mais à toa.
A parede do quarto, pintada, que encobre as manchas.
O rosto se descobre envelhecido.
A virilidade juvenil que dá lugar ao comedimento.
A agressividade vencida pela sonolência.
Quase cansaço!
O triunfo, ainda que por um minuto.
E lá na frente, bem à frente, nós.

sábado, 6 de abril de 2013

Sábado de manhã...


-Mas que porra! - urrou ele -, já disse que não sou um homem comum?! Não dou a mínima em parecer comum. Não tenho intenção de sê-lo. Preciso disso. Gosto até.
Insistia olhando aqueles olhos inexpressivos de ciúmes. Magoados e tristes.
-Preciso mesmo estar conectado ao que há de mais comum, frívolo e urgente em mim?! Digo que às vezes sim, e isso me aborrece profundamente! - tentou ele mais uma vez, agora, se sentindo arrependido pela aspereza de sua língua. Mas o que fazer? Não se controlava. Não era sutil.
-Então não distorça! Não tente ver o que não há! - prosseguia possesso.
-Por Deus, não vá atrás de certezas dentro dessa imensa interrogação que sou eu! Já lhe disse, Não procure respostas, nem perca o seu tempo tentando decifrar gestos, atitudes e pensamentos que jamais terão uma tradução, um significado ou que simplesmente estejam de acordo com alguma coisa que conhecemos nesses poucos anos vividos.
Bateu a porta atrás de si, deixando desta vez não só olhos tristes, magoados e inexpressivos, mas molhados.
-Penso que Proust, em seu interminável “Em Busca do Tempo Perdido”, queria dizer: frustrado com o tempo não vivido – ia conversando alto consigo-, eu declaro que não tenho medo. Não posso sentir medo, ou ficar paralisado assistindo as coisas acontecerem à minha volta. Tenho de agir. Mas, ao contrário do que todos pensam, não só quero como devo. Viver requer coragem; ousadia - pensava agora em outro autor que o tocava, só que este era dos lados de cá, dos imensos sertões -, tá ai algo perigoso: viver!
-Devo respirar todo o oxigênio desse universo, puro ou poluído; aspirar o que está solto e livre no ar.
Depois de um intervalo, continuou como que, embriagado pelo raciocínio que desenvolvia...
-Gostamos do que não entendemos, e isto nos basta. Desejamos até o último instante a mão que está vazia, porém coberta. Valorizamos o que não está totalmente à mostra; cultuamos o que não necessariamente é, mas se faz oculto, se faz desconhecido, por nós, pobres homens que apreciamos tanto rotular o que existe, e até o que não existe. O que existe só existe! – encerrou.
Tem consciência do peso das palavras. Dos infindáveis términos e recomeços cansativos que elas representam. Seu defeito é achar que no mundo ainda há espaço para caras que não são legais, e por isso continua tentando permanecer entre todos, forçando naturalidade e sorrisos vencidos, que não são de nada.
-Caras imprevisíveis, que não sonham com carros, e tampouco missa aos domingos, definitivamente não se encaixam! – desta vez falou mais alto do que queria.
Foi até o portão. Caminhou devagar, mas decidido. Assim absorvia o que podia do sol, ainda fraco, de início de manhã. Alcançou a rampa de pedras grosseiras de sua casa, a caminho da primeira venda, procurar café e açúcar, coisas que o acalmavam. Chinelo, bermuda e uma camiseta já velha, com uma cor desbotada, que lembra um tom salmão. Isto é tudo o que carrega sobre o seu corpo magro, contudo, viril. Sabe que não precisa impressionar. Já atua o suficiente durante os miseráveis dias da semana. Sente-se um tanto livre agora. Livre dos sapatos que o machuca. Da camisa cheirando a amaciante, especialmente preparada para a batalha.
No caminho saca um isqueiro com imagens que remetem à guerra. Acende um cigarro e desce a ladeira pitando, contente com a luz cada vez mais forte do astro que rege magnânimo sobre nuvens ralas e ruas mortas de um sábado agradavelmente parado. Ao entrar na pequena loja, abastece-se do que lhe interessa, e retoma o caminho de volta. Antes de entrar em casa, e se trancar, lambe com gosto os raios de luz que consegue. Faz-lhe bem. Senta-se na calçada vizinha e pensa que aquilo poderia resumir toda uma existência. Poderia ficar ali eternamente, se não fosse um barulho que vinha de dentro, alertando-o que os outros haviam já acordado, e que, o mundo, outra vez, lhe chamava.  

Saulo Oliveira

quinta-feira, 21 de março de 2013

Atrás do Rastro...


Andei vazio por esses dias vazios! Vazio de tudo. Seco; recolhido e amparado no Vazio de sorrisos, e de lágrimas, e de toques. Não tava pra conversa. 
Arredio, cogitei morar pendurado numa árvore bem alta, por um tempo. Inalcançável! E que, as folhas das árvores cheirassem a coisas antigas e velhas. 
Mesmo vazio e incondicionalmente solitário, seria feliz se pudesse ficar, ao menos, com uma lembrança. Uma lembrança esgarçada, surrada, e incolor, mas que, o seu cheiro ainda permanecesse inalterado, para quem sabe, tragar em excesso a poeira dos anos passados e permanentes.  
Descer por alguns instantes  foi uma tentação que perdurou todo o tempo de viagem. Não dei ouvidos às conversas que abundavam nos cantos por que passei. Quis um motivo para reconsiderar, para olhar uma segunda vez e não o encontrei.
Passeei despreocupadamente pelas ruas, em finais de tarde . Ergui a cabeça em incontinência à ordem que impregnava os cafés da cidade. Vi as esquinas abarrotadas de gente esperando a sua vez— pois ninguém escolhe seu papel, cada um recebe o que lhe dão. Chutei pedras pelo caminho, e arrastei, propositadamente, a sola do sapato no chão, arranhando-o. 
Ignorei a conspiração e a sabotagem que rolavam às minhas costas. Não colhi flores, mas arranquei a indecisão e a soberba com minhas unhas de bicho. Sem hesitar!
Só no dia seguinte soube do tamanho da mentira cretina, e o estrago que causou. O desfalque que comprometeu o achado, e a compensação, logo depois, engordurada de dúvida.
No dia que choveu, andei entre o mundo, desprotegido. Sem capa, sem guarda-chuva, sem agasalho, mas andei todo o tempo sem dor. Aprumava no peito o destemor tão valioso, aprendido na labuta; o desprezo à covardia, tão bem assimilado no olho de minha avó lascando lenha no quintal, num dia que pra mim, era só mais um, de brincadeiras e molecagens. 
Ia apoiado na certeza de que tudo está por um fio. De que tudo pode não acontecer, e isso não me apavorou. Aproveitei para botar em prática o que temos de mais primário e maravilhoso: a necessidade do urgente, do elementar. Engoli toda a água que vinha do céu e minhas roupas ficaram ensopadas.
Como sempre acontece, quis ir ao limite. Estava decidido a pisar descalço em espinhos que saiam majestosos pelo chão. Queria romper a linha do ódio barato; do empenho patético em dar nome às coisas.
Ansiava ver o sol depois da chuva, e atravessar o campo aspirando o cheiro novo da mudança, da madrugada; para então, subir numa árvore comprida, de troncos grossos e escorregadios, e de lá de cima absorver os aromas das coisas velhas, antigas, que preenchem o céu e ocupam os espaços, segundos antes, vazios.

Saulo Oliveira

sábado, 9 de março de 2013

Segredos


Foto: Miguel Schincariol
No ônibus mesmo foi falando sobre a sua vida, seus amores, desejos contidos e irrealizáveis. Tateava, como que no escuro, à procura de exclamações. Delirava ao fechar os olhos e selecionar calmamente os adjetivos. Fantasiava ao querer empenhar força total  à elocução descompassada; e se excitava ao tentar dar vida e ordem ao amontoado de verbos indóceis. Um discurso incompreensível que me assustou! Baixou uma imensa lista do que achava certo, concordava ou não dava a mínima. Disparou palavras aos montes. Eu, querendo me proteger daquilo tudo, levantava desconcertadamente os braços sobre a cabeça, sugerindo que desse um tempo. Mas não havia meios de aquilo parar. Continuei insinuando minha apreensão de ter à minha frente alguém tão perturbada e também tão provocadora, que levava dentro de si quantidade absurda de conflitos que, sendo multiplicados aos meus, ainda seriam poucos.
Aquele cenho contraído de animal acuado não escondia a beleza delicada; os traços finos; os modos tímidos e contidos de uma lady. Admito que, em muitas alturas daquela guerra de orações e sentenças vomitadas em cima de mim, fui impelido a abraçar o seu corpo miúdo, desprotegido e incrivelmente frágil. Disfarçava o seu medo do mundo, diante de expressões grosseiras e uma linguagem suja, que definitivamente, não condiziam com aquela boca, que ao contrário, abrigava dentes claros, dava forma a dois grandes lábios úmidos e pintados de rosa.

Saulo Oliveira

sábado, 23 de fevereiro de 2013

A voz que vem de dentro...

Fora até o quintal e percebeu que havia uma luz que brilhava de maneira tão intensa, que não ousou descobrir do que se tratava; permaneceu onde estava somente a apreciar aquele fenômeno que não compreendia, mas achava bonito, e isto lhe bastava.
Na medida em que ia afundando em si, em suas memórias, em seus pensamentos, a luz do objeto mais forte e reluzente ficava. Experimentou por um tempo não pensar; ficar imóvel, mas seu corpo já se lhe mostrava incontrolável, e sua vertigem emocional crescia em profusão, como os rompantes da natureza.
Naquele momento ele era todo energia; puro brilho. Descobrira seu mais notável talento, que se constituía na tradução em prosa da realidade. Um dia, ele sabe que o que o aguarda lá na frente são as estradas. E é feliz por receber isto como resposta. Um mundo inteiro para ser redescoberto, relido; desvendado pela enésima vez, só que, do seu jeito, com a sua pele, seu suor, seu sangue.
Desiludir-se é o exercício que aprendera contra o que se põe definido. Não demorou muito para que soubesse não haver uma consciência antes da vivência, e que, é preciso gastar sola, e se colocar navegante sem norte desde sempre.
Apreciava tê-lo como interlocutor, para que assim pudesse se curtir, e ouvir o que ele tinha a falar a si mesmo – por mais que pareça absurdo, o ato de conduzir uma conversa consigo pode significar um grande avanço, desde que, haja suficiente sinceridade de ambas as partes. As horas iam rápidas, quando se encontrava em sua companhia. A conversa fluía e quase sempre convergia ao ponto que considerava o mais importante: aonde pretendia chegar. Achava desnecessário valorizar a origem. Sabia que a partida era o que menos importava; a chegada sim. A chegada não só é importante, como se faz importante, toda vez que no caminho pinta a dúvida da localização, ou a imprecisão na direção.
O pensamento lhe fervia sempre que imaginava a quantidade de asfalto que havia à frente a ser vencido. Os rumores que ouvira sobre a vida calma, e a possibilidade de viver de maneira pacífica, e suavizada pelo desejo da passagem indolor, o apavorava, e o fazia querer renunciar a seu modo rude de interpretar os signos que a vida lhe mandava.
Pobre menino que cria cegamente na força bruta. Que entendia a saída como um rompimento incontornável, talvez para não ter o incômodo de carregar o peso que uma alma pode significar em certa altura da rota. No instante em que soube da grandeza escondida sob o fracasso, não sob o puro e indigno fracasso, mas embaixo dos fracassos que poderiam ter sido admiráveis vitórias em campo.
O atalho pode ser uma escolha bem mais fácil e tolerável, uma vez que os ventos fortes – os que, nos fazem curvar diante da imensidão– se fazem presentes onde a jornada é conduzida em área aberta, com a exigência implacável do nosso fôlego ao limite.

Saulo Oliveira

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Despedida


Como foi bom...
... saber que se foi (...), e desta vez pra sempre!
Gostei da novidade de não ter mais seu perfume nos cantos da casa.
Sabe (...), foi bom! Apesar de tudo, foi bom. Mas passou. Como tudo!
Já não preciso mais te carregar comigo aos lugares a que vou; nem adormecer aos poucos rememorando o teu sorriso.
Finalmente me vejo livre do encargo que é planejar o futuro.
Até quando mesmo a gente achou que isso ia durar? Essa admiração à distância sem medidas; essa cumplicidade que beirava a loucura; a reciprocidade doentia nos gestos, nas letras, nos beijos, no pensamento.
Quanto maior a intensidade das chamas, mais rápido elas se vão.
Será que fomos tão imprudentes em não perceber que o que se dava era o encontro do fogo com o fogo? Que se tratando de dois astros de potência e arrebatamento tão similares, o desfecho não seria outro senão a distância?
Hoje que não sinto mais as suas chamas e que o seu calor já não me alcança, me comprazo no frio das noites escuras que me fazem livre.
Por isso (...), vá! E ao contrário do que diz aquela bonita canção de Oswaldo, não olhe para trás. Não seja tola. Não permita que a felicidade não a encontre, que eu de cá também o farei.

Saulo Oliveira

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Solidão a dois...

É estar sem estar
E ter os cabelos escorrendo em suas mãos sem o ter.
Num gesto de carinho se vai a atenção numa lembrança que, teimosa,
Insiste no que não pode, no que não é pra ser.
Essa solidão é rasteira, ela é sutil; essa solidão a dois, também vem acompanhada de vazio;
Sem que minha distração deixe de notar e perceber;
Pois essa solidão é tão solidão.
O hálito, o cheiro do corpo, os pés descalços pela casa;
A geladeira que se abre na altura da noite, e a camisa larga que se encontra com perfeição.
O certo é que não há certo! A vida, essa vida é um grande mistério, do qual saímos sempre sem antes desvendar.
Tempo não há para pensar, para desperdiçar, para ser sensato ou discreto.
Há a vontade!
No final, lá no finalzinho, quando nada for voz ou grito,
Quando tudo for gemido e suspiro,
Não terei vergonha em dizer que amo de madrugada,
Que amo amores impossíveis, irreais;
Que faço versos trançados com a minha própria dor,
E rejeito uma fórmula mágica de ser só um, de se encontrar em um.
Essa solidão a dois... Que não é pecado de tudo, que não é só luxúria,
Mas que, também é procura.

Saulo Oliveira

Do fundo do meu coração...


sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Pra não dizer que não falei...

Foto: Gleydson Publio

Por que bloquear algo que vem de forma tão natural?
Por que tentar impedir essa força que rompe as barreiras do impossível e das dores desmedidas, até chegar ao lábio e num brilho se mostrar largo, intenso e irresistível?
Maior do que seu esforço em conter o riso, é o meu desespero em ver suas mãos se moverem rápidas, num gesto involuntário, mas acostumado, a obstruir a luz que brota de sua boca e que, resplandece em seus dentes, ainda brancos, por não provarem dos exageros e vícios desta vida.
Por isso digo: “sorria mais menina!” Mostre-se; mostre para o mundo essa vontade contida. Não se intimide pelas prováveis reprovações das gentes doentes, tristes e caretas.
Prefiro o riso à dor; Nem sempre foi assim. Leva um tempo para entender que não é preciso entender, que basta apenas sentir. Sentir ao máximo, até que a sensação impregne no corpo, na mente, e não seja mais uma simples e volátil sensação, e finalmente se materialize, num sorriso.
Não reprima, compartilhe. Há pessoas ao redor sedentas por um gole dessa felicidade inventada, a felicidade dos não convencionais, não convencionados. Daqueles para quem basta uma canção e que, percebem a grandeza escondida. Sim, porque a grandeza está oculta, secreta, geralmente em pessoas e coisas que sabem usar com maestria o disfarce de pequenos.
Agora que já sabe, se te pedirem ou se lhe apetecer, sorria. Mas lembre-se de guardá-lo um pouco pra mim. Reserva, nem que seja uma porção mínima desse teu encanto, a esse pedinte, a esse amante incorrigível que, se contenta com o pouco, desde que seja verdadeiro. Juro que, se você se insinuar e não me dá-lo de uma vez, me lançarei abrupto e decidido e o tomarei à força.

Saulo Oliveira




segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Esotérico

Não adianta nem me abandonar
Porque mistério sempre há de pintar por aí
Pessoas até muito mais vão lhe amar
Até muito mais difíceis que eu prá você
Que eu, que dois, que dez, que dez milhões, todos iguais
Até que nem tanto esotérico assim
Se eu sou algo incompreensível, meu Deus é mais
Mistério sempre há de pintar por aí
Não adianta nem me abandonar (não adianta não)
Nem ficar tão apaixonada, que nada
Que não sabe nadar
Que morre afogada por mim.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Do portão...

Foto: Gleydson Publio

A última vez que ela o viu foi dobrando a esquina em disparada, quase correndo. Estava magro, o cabelo enorme e usava botas de cano longo, camisa de algodão manga longa contra o sol e mochilão nas costas. Ela ainda gritou, fez gestos desesperados para que a visse, mas nada. O mochileiro desvairado não queria outra coisa naquele momento senão caminhar. E caminhou, caminhou desgraçadamente por muitos quilômetros. Não parava um segundo, nem pra respirar. À medida que dava vazão a seu desejo tresloucado de caminhar, a sensação era de que sua dor se esvaia junto à sola de seu calçado. E ainda de que sua desilusão só caberia mesmo numa estrada como aquela, larga, sem indicações, acostamentos ou qualquer que fosse a sinalização.
No princípio da jornada, o viajante gostou de estar só, e se sentiu confortável à condição de isolamento em que se via. Só que além do pensamento há coração; e dentro do corpo há alma.
O rapaz então mudou de planos, e ao invés de caminhar resolveu que melhor seria correr. Correr até não restar mais nada. Somente correndo seria possível deixar aquelas horas para trás. Somente correndo ele seria capaz de abandonar as promessas sem pestanejar.
Do portão, eu sei é que, ela ficou a acenar. Acenou o quanto pôde. E em contrapartida ele resistiu, resistiu até o seu limite, pra não voltar atrás rasgando a sua soberba besta e beijar de vez aquela boca sedenta, carnuda e alucinada. 

 Saulo Oliveira



terça-feira, 15 de janeiro de 2013

O ruído das paredes que desabam...


Foto: Querosene
Enche meus ouvidos de novidades e inflama meu corpo de excitação.
Sei que as paredes que hoje cedem, darão lugar mais tarde a outras, novíssimas e tomadas de desenhos coloridos em grafite. Adoro a arte de inovar, a iniciativa de seguir a marcha, mesmo sem entendê-la, o exercício de modificar a si mesmo o tempo todo; de dar vazão à criatividade e à liberdade de dizer coisas sem sentido; de ser contraditório e errar, errar sempre, errar heroicamente.
Acreditar é tarefa para os grandes, me refiro aos grandes de alma, aqueles que, são capazes de apostar até o último tostão em coisas de valor questionável para os outros, que teimam ou cedem em horas improváveis, que veem além do óbvio, choram diante da beleza, compreendem que para viver não é preciso muito, e que lutam com o fundamental. Os grandes jamais paralisam sob o medo de errar.
As coisas se repetem tanto durante os dias que, aparentemente são iguais, insossas e sem nenhuma atração. A rotina mitiga a expectativa de se espantar ou descobrir. O que é importante está sempre coberto, na maioria das vezes por uma camada fina de banalidade que, engana os sentidos destreinados.
Outro dia me disseram que, em sua vida, tudo estava perfeito, em ordem, reproduzindo o senso comum: “se melhorasse ia estragar”. Desconfiado, custei a acreditar, mas acreditei, acreditei duvidando, porque a dúvida também é essencial. Duvidei de que seja possível alcançar esse cume mágico de felicidade e satisfação de uma vez. Sou meio cético quanto à totalidade, não que seja irrealizável, só que é difícil imaginar a completude, num mundo em que a auto-elaborarão é constante e perene.
O saboroso é ouvir o estrondo do muro curvando-se, sucumbindo e em seguida, ouvir sem menos estrondo, o barulho da máquina criadora erguendo-o outra vez, mas jamais o mesmo. O material não só pode como deve ser o mesmo, reciclado, mas as curvas e os desenhos, ao contrário,devem ser escandalosamente distintos dos antigos, devem ser modernos, arrojados, provocantes e ousados, e que reflitam, sobretudo, a nossa capacidade latente de começar tudo de novo.

Saulo Oliveira

sábado, 5 de janeiro de 2013

Só sei amar quando é de madrugada...

Foto: Teo Neto

No momento em que ouço o farfalhar solitário de folhas sobre o chão e o ruído dos cães vagabundos pela rua, fico mais leve, de riso fácil e um tanto mais menino.
A madrugada alta e onipresente, com seu muro de luzes opacas a reinar o mundo, é o que dá mais coragem e vigor para o dia que vem vindo. É nela que sinto o vento manso, fresco, quase frio, roçando ligeiramente a pele, e trazendo consigo coisas e medos (logo dissipados), muito distantes e antigos, que ficaram nalgum canto, e que, simplesmente, não se faz mais questão de serem lembrados.
É na madrugada alta e abafada, que me esgueiro por sobre a mureta do quintal, a fim de avistar a imensidão e o horizonte enigmático do sem fim, ansiando encontrar respostas para o amanhã, que virá muito provavelmente sem rodeios e abruptamente.
O que me consola é escutar o borbulhar da água, impaciente por ser tingida de negro, tomada pelo pó fresco de café, que depois de pronto, com seu cheiro forte e inebriante, ocupa cada espaço da casa, reclamando com urgência um cigarro.
A madrugada deve ser a parte do dia em que Deus trabalha. Deve ser ainda, o momento preferido de Deus, uma vez que é o preferido dos amantes.
Somente na madrugada, na madrugada alta e divina, é que deixo de ser macho e sou fêmea, para só assim, compreendê-la muito além do sexo. É lá, nas entranhas da madrugada, que eu me calo, e com o mais sincero interesse ouço e entendo o que ela diz. Verifico, com cuidado, o ritmo de sua respiração, enquanto dorme exausta. Vejo a beleza de sua alma, e me emociono com as marcas e o cansaço de seu corpo nu.
Penso que, a morte, o “fim” a que estamos todos predestinados, bem que podia ser uma bela e cativante madrugada, daquelas bem quentes, a nos esperar com sua larga e iminente alvorada.
De madrugada é quando minha mente insone descansa; de madrugada amo mais, e por conseqüência disto, é também quando estou e me sinto mais vivo.

Saulo Oliveira