-Mas que porra! - urrou ele -, já disse que não sou
um homem comum?! Não dou a mínima em parecer comum. Não tenho intenção de
sê-lo. Preciso disso. Gosto até.
Insistia olhando aqueles olhos inexpressivos de
ciúmes. Magoados e tristes.
-Preciso mesmo estar conectado ao que há de mais
comum, frívolo e urgente em mim?! Digo que às vezes sim, e isso me
aborrece profundamente! - tentou ele mais uma vez, agora, se sentindo
arrependido pela aspereza de sua língua. Mas o que fazer? Não se controlava.
Não era sutil.
-Então não distorça! Não tente ver o que não há! - prosseguia
possesso.
-Por Deus, não vá atrás de certezas dentro dessa
imensa interrogação que sou eu! Já lhe disse, Não procure respostas, nem perca
o seu tempo tentando decifrar gestos, atitudes e pensamentos que jamais terão
uma tradução, um significado ou que simplesmente estejam de acordo com alguma
coisa que conhecemos nesses poucos anos vividos.
Bateu a porta atrás de si, deixando desta vez não
só olhos tristes, magoados e inexpressivos, mas molhados.
-Penso que Proust, em seu interminável “Em Busca do
Tempo Perdido”, queria dizer: frustrado com o tempo não vivido – ia conversando
alto consigo-, eu declaro que não tenho medo. Não posso sentir medo, ou ficar
paralisado assistindo as coisas acontecerem à minha volta. Tenho de agir. Mas,
ao contrário do que todos pensam, não só quero como devo. Viver requer coragem;
ousadia - pensava agora em outro autor que o tocava, só que este era dos lados
de cá, dos imensos sertões -, tá ai algo perigoso: viver!
-Devo respirar todo o oxigênio desse universo, puro
ou poluído; aspirar o que está solto e livre no ar.
Depois de um intervalo, continuou como que,
embriagado pelo raciocínio que desenvolvia...
-Gostamos do que não entendemos, e isto nos basta.
Desejamos até o último instante a mão que está vazia, porém coberta.
Valorizamos o que não está totalmente à mostra; cultuamos o que não
necessariamente é, mas se faz oculto, se faz desconhecido, por nós, pobres
homens que apreciamos tanto rotular o que existe, e até o que não existe. O que
existe só existe! – encerrou.
Tem consciência do peso das palavras. Dos
infindáveis términos e recomeços cansativos que elas representam. Seu
defeito é achar que no mundo ainda há espaço para caras que não são legais, e
por isso continua tentando permanecer entre todos, forçando naturalidade e
sorrisos vencidos, que não são de nada.
-Caras imprevisíveis, que não sonham com carros, e
tampouco missa aos domingos, definitivamente não se encaixam! – desta vez falou
mais alto do que queria.
Foi até o portão. Caminhou devagar, mas decidido.
Assim absorvia o que podia do sol, ainda fraco, de início de manhã. Alcançou a
rampa de pedras grosseiras de sua casa, a caminho da primeira venda, procurar
café e açúcar, coisas que o acalmavam. Chinelo, bermuda e uma camiseta já
velha, com uma cor desbotada, que lembra um tom salmão. Isto é tudo o que
carrega sobre o seu corpo magro, contudo, viril. Sabe que não precisa
impressionar. Já atua o suficiente durante os miseráveis dias da semana.
Sente-se um tanto livre agora. Livre dos sapatos que o machuca. Da camisa
cheirando a amaciante, especialmente preparada para a batalha.
No caminho saca um isqueiro com imagens que
remetem à guerra. Acende um cigarro e desce a ladeira pitando, contente com a
luz cada vez mais forte do astro que rege magnânimo sobre nuvens ralas e ruas
mortas de um sábado agradavelmente parado. Ao entrar na pequena loja,
abastece-se do que lhe interessa, e retoma o caminho de volta. Antes de entrar
em casa, e se trancar, lambe com gosto os raios de luz que consegue. Faz-lhe
bem. Senta-se na calçada vizinha e pensa que aquilo poderia resumir toda uma
existência. Poderia ficar ali eternamente, se não fosse um barulho que vinha de
dentro, alertando-o que os outros haviam já acordado, e que, o mundo, outra vez, lhe chamava.
Saulo Oliveira