sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Na beira do rio...

      Se perdera, outra vez, na nuvem densa de lembranças que lhe acorria, ali mesmo na beira do rio, enquanto seguia deitado de papo pro ar, ao longo de um número de horas que nem se lembrava mais. Ia junto à correnteza que descia resolvida. Tudo naquela barranca úmida com cheiro de barro ainda novo e lavado, lhe encantava... —Tomava o ar curto da criança! Depois, observava a lágrima descer em borbotões. De excitação, seu corpo estremecia em calafriozinhos que chegavam feito um fio fino d’água. Um anu-preto rompe o peito e o silêncio absoluto, numa toada saudosa. Um canto aprumado, constante e cheio dos mistérios daquele mundo que não vemos, por falta de visão. Pensava agora nos de casa. No pessoalzinho de corpo rijo, lépido, mas mirrado. Das criaturazinhas que sofrem caladas, no pé da porta dumas casinhas sem graça, cimentadas de tristeza, com tijolos cozidos no forno das desilusões. Tudo sem muita alegria, quase nada de ânimo, "rama espalhando barrigadas no chão".  Tudo isso lá na ponta da estrada que dá para uma vegetação seca, sentindo falta da visita da chuva, que demora.
     Apois a beira do rio lhe caia mais de conforme. Não que não gostasse dos seus. Não que o chão quente e seco não lhe inspirasse cuidados e afeto. Tinha-lhes amor. É que tirar o pé do mundo real, quando se pode, faz é muito bem. Não ter que cismar frente à dificuldade, nem ter que fazer muito do pouco... Lembra que não tarda até sua mãe sair pela trilha empoeirenta que desemboca no areal, alvo que nem algodão. Não demora muito até ela lhe pegar pelo braço, com carranca de brava, e arrastá-lo pra casa. Esperneava sempre. Gemia, gritava e ia num choro só de fazer pena. A matriarca cheia de raiva por essa empreitada roubar-lhe horas dos seus afazeres, que não eram poucos.
     Bastava chegar em casa pra o coração velho de mãe amolecer e transformar a raiva em entendimento. Em doçura. Aprendeu ainda esses dias com um enxame de abelhas no quintal de casa, rondando um mamoeiro. Uma zoeira tão danada e violenta. Um ferrão tão poderoso de veneno. Era só olhar o inchaço na quina do pescoço. No fim, descobriu que tanta ojeriza e maldade produziam mel... —Vai entender.
    A panela, a essa hora, já devia de ter algum de comer pronto. "A peste do menino lhe atrasou a labuta outra vez". O marido, velho coitado, pelejava igual um desgraçado, arrancando pedra na esperança de crescer um roçado. Já devia de estar chegando. Pé na estrada, as costas arqueadas e vestidas de molambos. Trazendo a fome na cara preta de sol. O beiço em riste, empinado de antipatia, feito burro na iminência de empacar. Lambia o sal seco que empedrava pouco arriba do queixo.
    Com a quentura do meio-dia, o chão batido abrigava um punhado de frescor. O pequeno, agora de paz refeita com a mãe, espoja manhoso, com o cachorro seu amigo, pegando um tanto do frio pra si. Ouve lá fora o ritual diário de seu pai antes de entrar. Esfrega as botinas sujas num tampo de madeira que toma as vezes de tapete. Já dentro, tira o trapo de chapéu e o escorrega lento no braço da cadeira que, por sua vez, também serve de trinco para a porta. Ao se verem, pai e filho se confundem num só. Não sabem quem é quem. Se o é adulto, ou se o foi criança. Sabe, mas custa admitir. Há muito que a obediência faz as coisas se repetirem. O pai tem os ensinamentos sólidos e sabe. O filho deu pra aprender e custa a admitir. Descamba pro rio todo dia. Adormece em suas margens, e observa a vontade do mato, que cresce solto. Não compreende o significado da palavra liberdade, mas a viu esses dias nos pés de um sapo bruto, que pula ligeiro. Viu, incutiu e pegou a sonhar... Jura que até já a viu dando voltas em seu corpinho de vara, enquanto repousa no lajedo, se secando sob o sol... E que, ainda aproveita o embalo do vento morno da manhã adiantada, e sussurra em seu ouvido palavras difíceis de uma criança decifrar.  


Saulo Oliveira