quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Não procuro nem leio João...

... ao contrário, João é quem me procura e me lê.
No meu sonho, o encontro sempre no cair da tarde, embalado pela fresca das veredas, protegido, embaixo da sombra de um buriti formoso e grande, plantado sobre a imensidão do Sertão.
 Ele vem cavalgando o seu Burrinho Pedrês, vagaroso, pacífico, pedindo paciência e trato no viver!
... — Viver é perigoso, perigoso, perigoso por demais!
São os ecos de ponderação de Riobaldo que o acompanha na garupa do burrinho que geme pelo caminho de cascalho. O sofrimento do burro pequeno, porém dotado de aguda esperteza, é recompensado pela esperança que nutre de encontrar, no fim da jornada, uma bacia forrada do melhor pasto.
No momento em que João me avista, atrás dos seus óculos enormes e de aros grossos, é perceptível a sua emoção. Vislumbro uma poça de água na beirada de seus olhos, e o reflexo exato do menino Miguilin. Como suspeitava, João já não distingue o real do não real; o criador da criatura, personagem criado, segundo sua vivência,  do homem que já existe pleno, torto, continuamente em construção e disputando espaço com o Cujo,  o Coxo, o Temba, o Canho, o Que não Ri, o Pé de Pato, o Demo, o Rapaz...
A sua pele brilha, não sei se do suor que derrama pelo esforço sob o sol, ou se pela beleza magnânima, herdada de Diadorim. A disposição, ao apear da montada, é impressionante. Mesmo mancando da perna, por padecer de uma íngua na virilha, se movimenta com agilidade. Vai no alforje e se serve da matula. Em seguida, traz  um pouco do suprimento para repartir entre nós,  todos já cansados e famintos. Nesse momento do sonho, nos emocionamos... Seus gestos de força e generosidade nos lembra o falecido e tão honrado Manuelzão.
A noite vem chegando e ele não quer estender a conversa para além do poente. Não quer prolongar a sua estada fora de casa ao romper da noite. Dizem que, dos últimos meses para cá, deu para ouvir cada barulho que a madrugada produz; cada som emitido pelos habitantes noturnos do mato. Deu pra varar as horas acordado, assistindo a qualquer suspiro de vida nas brenhas, barrocas e locas, tal como o Chefe.
Dentre todos os hábitos que temos em comum, o de pitar um cigarro de fumo de corda, enrolado numa palha fina sedosa, após um bom gole de café fresco, é o que figura mais exato em minha memória.
João, enquanto viveu, não quis dar lição de moral, tampouco ensinar. Através do exemplo foi que o bruxo diplomata, como era lembrado por alguns dos seus amigos, mostrou ao mundo a força da experiência empírica transpassada para o papel com esmero e fidelidade de detalhes... Quanta força criativa ao reinventar um universo tão dele...! Tão nosso!
É ai que reside o gosto incontido e a paixão pelas letras bordadas de magia desse sertanejo chamado João, que segundo Drummond, deixou esse mundo, e "ficamos sem saber quem era João e se João existiu".
Se foi só um sonho ou se de fato João existiu, eu não sei!
Nos deixou muito cedo, mas com uma monumental riqueza de palavras, que hoje,  sei   apenas que, também sou sertanejo e gosto muito desse Guimarães, consagrado João!


Saulo Oliveira